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As Mãos da Flor do Amor: Medicina da Família
Em continuidade à série de reportagens que apresenta as pessoas responsáveis pelo tecido social da nossa Associação, hoje são os médicos de família e comunidade que trazem seus relatos sobre a prática e a vivência junto à Cannabis sativa. Outras pessoas que, com suas canetas, vêm reconstruindo a imagem da erva e abrindo caminho para que o tratamento medicinal seja cada vez mais acessível e desmistificado.
Muitas vezes o médico de família e comunidade atua na ponta do Sistema Único de Saúde (SUS), oferecendo atenção básica e testemunhando, dia a dia, as mazelas de quem depende da saúde pública. Atende pessoas de todas as idades, acompanha doenças crônicas, trata condições agudas e promove a prevenção e a promoção da saúde. Mas, para além disso, estabelece uma relação de proximidade com os pacientes e com suas famílias, compreendendo seu contexto social, econômico e cultural para oferecer um atendimento mais humano e benéfico a longo prazo.
São profissionais que abrem caminho não apenas na democratização do tratamento com a Cannabis sativa, mas também na desconstrução do preconceito e da desinformação relativos à planta, profundamente arraigados em qualquer extrato social do nosso país.
Dra. Julia Amaral, médica de família e comunidade, sempre acreditou na medicina baseada no saber popular. "A cannabis medicinal sempre foi algo que me interessou. Acho que é uma ferramenta muito valiosa, pautada em um saber ancestral e popular, que são práticas em que eu sempre acreditei e defendo muito", conta. Para ela, a Cannabis sativa tem potencial para transformar vidas quando usada da maneira correta.
Em sua prática diária, ela tem percebido o benefício medicinal principalmente no tratamento em casos de transtornos de insônia e quadros de ansiedade. “Acho que essa questão da saúde mental é um grande desafio do nosso século. E também quadros de dores crônicas, como endometriose, fibromialgia e questões osteomusculares. Para o público infantil, eu tenho usado muito no suporte de sintomas associados ao Transtorno de Espectro Autista (TEA) e no Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH). E os resultados têm sido muito positivos”, relata.
“É sempre muito interessante trabalhar com a cannabis, porque muitas vezes os pacientes vêm me procurar no contexto de ser a última ferramenta que eles estão lançando mão, o que é até negativo. Acho que já passou da hora de a gente tentar orientar e, se possível, fazer uso dessa ferramenta desde o início. É muito emocionante ouvir dos pacientes que agora têm conseguido viver de forma mais harmoniosa. Então, a gente não está falando, necessariamente, de cura, mas de uma melhoria muito importante na qualidade de vida dessas pessoas”, afirma.
Dr. Rubens Carvalho, médico de família e comunidade e acupunturista, também foi encontrar no saber popular e ancestral parte das respostas. Atuando há 20 anos no SUS, ele percebeu que a medicina tradicional nem sempre oferecia soluções adequadas para seus pacientes. "Muitos chegavam com dores crônicas, ansiedade, insônia, e o arsenal convencional não resolvia”, conta. Diante disso, sempre buscou associar o conhecimento oriental da saúde ao que era ensinado nas universidades. “Quando comecei a estudar a Cannabis sativa, vi o impacto positivo que ela poderia ter na vida dessas pessoas”, relata.
“Esse racionalismo científico ocidental é uma maneira de raciocinar sobre a saúde. A acupuntura com a medicina chinesa é outra. Mas são duas coisas que elas conseguem se integrar. É só uma não negar a outra. A ciência tem que estar se abrindo para isso, estudando mais o assunto. É preciso conhecer um pouco dessas outras medicinas complementares para integrá-las”, afirma.
Ele compartilha a curiosa história de sua primeira paciente no tratamento com fitocanabinoides: por volta de 2009, a mãe dele teve diagnóstico de artrite reumatóide, doença que causa bastante dor. Ela tentou alguns tratamentos alternativos, doses altas de vitaminas, ozonoterapia e, enquanto isso, Rubens começava a entender mais sobre o potencial medicinal da planta em seus estudos. “Um belo dia, a mesma mulher que, quando eu era adolescente, me falava que eu não devia fumar maconha, que ela ia queimar todos os meus neurônios, que eu não ia ser ninguém na vida, chega para mim e fala: — 'Ô Rubens, olha, eu estou ouvindo falar que maconha está ajudando um conhecido. Estou aqui tomando corticoide e cheia de dor. Eu estou querendo maconha’. E ela foi a minha primeira paciente. Hoje ela continua tomando e aceita muito mais tratamento”, conta.
Na seara da medicina de família, ele conta que as questões mais recorrentes em sua prática são dor, demência, TDAH e autismo. “Teve um senhor que tinha demência com 70 anos. Ele era muito agressivo com as filhas, não lembrava de ninguém mais, não dormia direito, jogava as coisas, urinava na casa inteira, como se fosse um cachorro marcando o território. E que depois que ele começou a usar o THC, ele melhorou muito o comportamento. Hoje ele até consegue lembrar o nome dos filhos em alguns momentos. Para a filha dele, isso foi uma coisa emocionante e ela virou fã do tratamento. Nesse caso e em alguns outros, a gente ainda consegue ver uma certa reversão de alguns fatores da demência”, relata.
Outro médico, Dr. Alexandre Machado, oftalmologista, pós-graduado em endocanabinologia e membro da Sociedade Brasileira de Estudos da Cannabis (SBEC), possui mais de 30 anos de prática clínica e reflete sobre as possíveis causas das doenças mais comuns dos dias de hoje: “Antigamente, você via as pessoas ficando mais em casa, fazendo pouca coisa em tempo real, despreocupadamente. Você não sabia onde estava ninguém; não tinha celular. A pessoa sumia durante o dia e as notícias demoravam a chegar. Mas agora é uma enxurrada de informações somada à necessidade de estar muito conectado, o que está gerando um quadro ansioso muito grande. As pessoas estão muito mais ansiosas do que o normal, em quadros que têm como o outro lado da moeda a depressão e a insônia”, esclarece.
Ele reforça o relato dos colegas sobre os benefícios do tratamento com a Cannabis sativa em casos dessa natureza: “Os casos de Alzheimer e demência, para mim, são revolucionários. A pessoa estava totalmente alheia, agredindo os familiares, acamada. Com o tratamento, você percebe aquela melhora contínua. Então os familiares vêm conversar com você e falam: ‘Nossa, como está melhor, como meu avô melhorou, como meu pai melhorou’. Porque quando você cura uma pessoa que está dentro de uma unidade familiar nessa situação, você cura todo aquele grupo. Esses casos realmente saltam aos olhos”, diz Dr. Alexandre.
Ele cita também os benefícios da erva para pacientes com mal de Parkinson: “Muitas vezes é uma pessoa que nunca teve contato com a planta, nunca fumou nada. Estava, antes da cannabis, polimedicamentado, mas sem apresentar melhora, com tremores, desconfortos intestinais, efeitos colaterais. E aí você entra com um óleo combinado, CBD com THC, e aquele paciente para de tremer, começa a andar com mais facilidade, começa a conviver socialmente também — os tremores afastam ele da convivência social, porque ele se envergonha. Então aquele paciente começa a brilhar, e isso repercute na vida da família, que está ao redor”, conta.
“Temos que olhar para fora, abrir um pouco a mente e ver os países mais desenvolvidos, onde não se discute mais se a cannabis é útil do ponto de vista medicinal. Discute-se a questão do uso adulto, de poder comprar sem receita. Lá eles conseguiram romper essa barreira, apagando esse preconceito, porque a parte científica não tem questionamento. No quesito científico, não há mais dúvida dos benefícios que a cannabis pode trazer à saúde das pessoas. Disso eu não tenho dúvida nenhuma. Se eu tinha alguma dúvida antes, depois de estar trabalhando diretamente com esses pacientes, eu não tenho mais”.
Também contribui o Dr. Rodrigo Rios, médico da família e comunidade, que traz sua vivência do SUS em Porto Seguro (BA): “A gente observa bastante a ansiedade, insônia, mas também situações mais graves, como as dores crônicas, desde idosos com artrite, fibromialgia, também Alzheimer, Parkinson, alguns pacientes pediátricos com autismo. Tem alguns pacientes também, abuso de crack, cocaína, até mesmo álcool e tabagismo, que conseguem, de alguma forma, encontrar um suporte na cannabis como uma forma de redução, até mesmo de abandono desses vícios”, conta.
Dentre os casos marcantes para ele, há o de uma paciente com fibromialgia que conseguiu, com a incorporação do uso combinado de diferentes fórmulas da Cannabis Sativa em seu tratamento, abandonar nove medicamentos, dentre analgésicos, anti-inflamatórios e anticonvulsivantes. “Ela encontrou uma alternativa, ou várias alternativas, que ela foi explorando, encontrando algo que fizesse sentido para ela”, afirma. Essa paciente continuou sendo acompanhada por uma reumatologista, que mesmo não prescrevendo, concorda muito com a ideia de uma redução de danos, já que substituiu medicamentos, com efeitos adversos e complicações, por um outro, muito seguro.
“Também tem um paciente com dor crônica, que é uma neuralgia do trigêmeo, uma das dores mais intensas descritas na medicina. Ele conseguiu encontrar uma resposta significativa na redução da dor e também na frequência da crise, uma redução do tempo em que ela atinge o seu pico. Quando ele percebe o início dos sintomas, ele mastiga um comestível, uma balinha de gelatina de proporção igual entre THC e CBD, e já percebe uma resposta significativa, o que, para ele, faz valer a pena manter essa continuidade”, conta Dr. Rodrigo.
Ele defende o conhecimento do sistema endocanabinoide e dos potenciais terapêuticos da Cannabis sativa para melhores resultados no tratamento: “É essa questão de uma visão mais integralista do paciente, algo que realmente o sistema endocanabinoide nos ensina: sobre como ele atua como modulador e busca de homeostase de equilíbrio em diversas funções aí do nosso organismo, desde apetite, sono, humor. Essa visão mais completa do paciente amplia também as possibilidades terapêuticas para dor, para ansiedade, insônia”, diz.
Do outro lado da linha, estão as mãos dos pacientes, que recebem o medicamento e confirmam os depoimentos dos médicos. Pessoas que decidiram se associar para, assim, estabelecer sua relação com a planta nascida na Flor do Amor, que cresce sob a guiança e amparo dos valores ancestrais, em cultivo orgânico, alinhado aos ciclos da natureza, respeitando o processo natural das plantas e visando a regeneração do cerrado.
Gustavo Souto, aposentado de 70 anos que atuou em diversos órgãos públicos e deu aula na Universidade de Brasília (UnB), compartilha como iniciou o tratamento. Após passar por processo pessoal conturbado em meio à pandemia da Covid-19, ele precisou recorrer ao psiquiatra para atravessar o momento: “Comecei a ter uma coisa que eu nunca tinha tido na minha vida e que eu achava que era uma coisa absolutamente, totalmente distante de mim, que era a crise de ansiedade. A primeira crise de ansiedade foi um negócio muito terrível”, relata.
Ele foi parar no hospital: “Achava que estava morrendo, estava tendo um ataque cardíaco. A médica que me atendeu falou que estava tendo uma crise de ansiedade e indicou que eu procurasse um psiquiatra. E eu, além disso, estava já com muita dificuldade no meu sono. Fui ao psiquiatra, que me passou os remédios que usam para tratar ansiedade, depressão, essas coisas todas. E eu comecei a tomar até remédios para sono também. Tomei muito tempo. Por mais de ano eu tomei esse zolpidem, que era a única coisa que me fazia dormir”, conta.
Foi quando, em 2020, Gustavo ouviu do filho que deveria considerar o tratamento com a Cannabis sativa: “Resolvi tentar. Tive uma consulta com um médico, que me receitou tomar um óleo, meio a meio de CBD e THC, e me passou também o uso de flores. E fui vendo que estava dando resultado. Eu comecei a dormir melhor, não tive mais crise de ansiedade nenhuma. Nunca mais tive. E eu vou dizer a você: foi isso, essa fórmula, foi que deu certo na minha vida, sabe? Eu passei a não ter mais problema, nenhuma ansiedade. Passei a dormir normalmente. Durmo a noite toda, não fico acordando”, conta. Hoje, Gustavo não toma mais nenhum remédio psiquiátrico.
Outro paciente que relata um pouco de seu tratamento e de sua relação com a planta é Enrique, de 41 anos: “Conheci a cannabis medicinal inicialmente através da minha mãe, que teve câncer e a usou como suporte ao tratamento convencional. Ela cultivava, e isso a ajudou muito, não só na diminuição dos sintomas da doença, mas também a se reconectar profundamente com a natureza”, afirma.
Enrique conta que sempre conviveu com a ansiedade: “Já tinha experimentado abordagens tradicionais, como terapia convencional e mudanças no estilo de vida. Embora tenham ajudado parcialmente, esses tratamentos não foram suficientes para me proporcionar a melhora consistente e duradoura que eu buscava. Em conjunto com minha médica, iniciamos o tratamento testando o óleo com CBD, as dosagens, até chegarmos à formulação atual, que trouxe excelentes resultados. Nunca mais tive crises de ansiedade. Além disso, minhas relações afetivas e profissionais melhoraram significativamente. Hoje estou trabalhando com algo de que realmente gosto, com mais equilíbrio emocional e produtividade”, diz.
No meio desse caminho, a Associação Flor do Amor é responsável pelas mãos que transformam o objeto da receita médica na medicina a ser incorporada à vida dos paz’cientes.
Dr. Rubens é um dos que advogam pela prescrição via associação: “Eu acho que esse caminho das associações é o caminho mais bonito para a gente prescrever. Fala muito da resistência, sobre militar por esse tratamento. As associações são uma forma de resistência, principalmente, porque para você se tornar associação, primeiro você precisa fazer a desobediência civil. Para a gente ter esse benefício de poder comprar o nosso remédio tranquilamente, sem medo de a polícia chegar junto com a remessa, essas pessoas precisaram estar passando esse risco. Isso mostra o quanto que elas são militantes, o quanto que elas também estão contribuindo para a mudança na legislação deste país”, reflete.
Ele lembra também que desde 2014 a legislação autoriza a importação, mas pondera a falta de acesso para muitos nessa modalidade: “Quem tinha dinheiro para pagar o tratamento importado tinha o remédio e o benefício. Mas o governo não estava nem aí para quem não podia pagar, seja por conta do preço, do frete internacional, dólar, etc. A Abrace percebeu que poderíamos baratear isso fabricando em solo nacional. Sabemos que a Cannabis sativa gosta de sol, moramos num país tropical… Como é que a gente vai ficar importando dos Estados Unidos, pagando mais caro, botando dinheiro para fora, sendo que a gente poderia ficar com esse dinheiro aqui e isso virar algo para o nosso próprio país? Dar emprego, gerar renda, emprego e beneficiar os pacientes”, diz.
Sobre a possibilidade de importação do tratamento, Dr. Alexandre destaca outros pontos: “A importação é muito controlada. Você não consegue entrar num site lá de fora e comprar um produto X. Você precisa das empresas intermediárias, que estão cadastradas na Anvisa, que têm algum representante aqui no Brasil e vão intermediar esse processo. Isso favorece a cartelização. Ao colocar um intermediário, os preços sobem”. Ele lembra que anos atrás os preços de importação eram altíssimos, com tratamento de até 5 mil reais por mês. “E isso foi a pedra fundamental para os pacientes, que se associaram e começaram a fazer o próprio cultivo para conseguir ter acesso mais barato”, afirma.
Além disso, ele ressalta a importância da questão comunitária de pertencer a um grupo que acredita no mesmo objetivo: “Obter o medicamento por meio de uma associação cria um envolvimento diferente com o paciente. Quando ele está associado, tem a oportunidade de conhecer o seu cultivo, de entender como é que está funcionando, de ser parte de uma coisa maior. De perceber que também está contribuindo para o avanço, para legalizar, para cortar o preconceito. É aí que nós vamos mudar a realidade aqui no Brasil. Vai ser através das associações”.
Sobre o envolvimento com a comunidade, Enrique, paz'ciente da Flor do Amor, compartilha que, para ele, a Associação é um espaço de acolhimento emocional, terapêutico e espiritual: “Não se limita ao fornecimento da medicina, oferece um ambiente de pertencimento e aprendizado. Em uma das vivências promovidas pela Associação, conheci o sistema de plantio e cultivo em agrofloresta, algo que me deixou muito contente, pois já faço parte de uma CSA (Comunidade que Sustenta Agricultura), que utiliza o mesmo método para produção de alimentos. Isso fortaleceu ainda mais minha conexão com a Associação e com a natureza”, conta.
É com esse espírito que fortalecemos a cada dia o tecido social da nossa comunidade, seja dentro da Associação Flor do Amor ou na luta pela libertação dessa planta que era livre até poucos dias atrás na história da humanidade.
Nossas mãos trabalham cuidadosamente em prol da ampliação do uso medicinal da Cannabis sativa, do resgate do poder espiritual dessa erva sagrada e da busca pela justiça social, ao apoiar aqueles que não têm condições de pagar pelo tratamento.
Nossa maior colheita nessa caminhada é a relação que nutrimos com cada um da nossa comunidade.
Texto: Pedro Turbay
Arte: Sonam Henry
Revisão: Alexandra Joffily